A pediatria tem sido um dos principais obstáculos para a saúde pública em Santa Catarina. Seja pela dificuldade em encontrar profissionais no mercado ou pelos impactos que a falta deste especialista traz, o fato é que os municípios têm lidado com a alta demanda nos atendimentos e as famílias sofrem com atrasos, filas e até falta de médicos.
Para entender a escassez da profissão, Cecim El Achkar, médico pediatra há 44 anos, nos sugere a voltar quatro décadas atrás, quando a área ainda era extremamente disputada, e fazer um paralelo com os dias atuais.
Ele conta que entre as décadas de 1970 e 1980 os estudantes que se formavam tinham quatro destinos almejados: ginecologia, cirurgia, clínica médica e pediatria. Quem não conseguia atuar nessas especialidades, migrava para a homeopatia ou dermatologia. No entanto, para a medicina à época, tratar doenças de pele significava algo muito simples e alguns médicos, segundo Cecim, tinham vergonha de assumir que atuavam na área. Mas, com o passar dos anos, com mais tecnologias sendo implementadas dentro dos consultórios, aliado a mudança no perfil das famílias e outras prioridades surgindo – antes vistas como supérfluas –, a pediatria tornou-se mais artesanal.
— O pediatra não tem instrumento, não tem máquina. Você examina uma criança, você colhe uma história. E as doenças de criança não são do dia, são de semanas e se repetem muito no primeiro e segundo ano de vida. Além disso, a criança não fala. Como não tem tecnologia, demora uma consulta, até duas para descobrir por que a criança está chorando. E uma consulta pediátrica é um compêndio. É para falar sobre o sono, alimentação, desenvolvimento, difi culdades e até comportamento da criança. Tudo isso numa consulta — reflete.
Na avaliação do especialista, o que começou a acontecer é que o pediatra passou a ter sobrecarga de trabalho e uma remuneração não condizente com esta demanda. Neste cenário, segundo o médico, estudantes de Medicina que fazem parte da nova geração começaram a optar por profissões que pagam melhor e que tenham uma rotina menos exaustiva, além de buscarem ramos mais tecnológicos.
— Hoje em dia também tem celular. A mãe liga a hora que quer, manda mensagem pelo WhatsApp, manda foto... E não se paga por isso. Os médicos mais novos não querem mais essa situação. Os que estão se formando, olham outras especialidades e pensam: “Eu ganho 100, mas vou me incomodar 10. Na pediatria, vou ganhar 10 e vou me incomodar 100”. Quero dizer, nenhuma pessoa em sã consciência vai fazer pediatria, a não ser que tenha uma vocação para isso — analisa.
Falta de política pública e tempo de especialização desestimulam estudantes
Marcelo Scheidemantel Nogara, médico e coordenador do curso de Medicina da Universidade Regional de Blumenau (Furb), opina que a falta de uma política pública adequada faz com que cada vez mais estudantes de Medicina e recém-formados percam o interesse na especialização.
Para o profissional, principalmente no que diz respeito à saúde pública, a inexistência de um plano de carreira em cidades de interior faz com que os poucos pediatras que ainda se especializam busquem as capitais ou grandes cidades, já que a expectativa de se fixar no mercado é maior nessas regiões.
— Às vezes se traz um pediatra especialista de fora para uma cidade do interior e coloca lá para trabalhar. Ele começa, mas não pagam pelos anos que ele fez especialidade, pagam como se ele fosse generalista. E se esse médico depois perde o emprego ou fica doente, não tem uma política de pensão para ele, ou uma aposentadoria adequada e específica para esse profissional. Então, prefere-se ficar em uma cidade grande, que tem a possibilidade de abrir um consultório — exemplifica.
Outra questão pontuada por Nogara é o tempo de residência que o profissional precisa para especializar-se em pediatria, que passou de dois para três anos em 2019. Para ele, isso dificulta ainda mais a formação e desestimula os médicos, principalmente no quesito financeiro.
— O indivíduo tem que ficar mais três anos após os seis da faculdade estudando para uma especialidade. Especialidade essa que também não é valorizada, porque os plantões e as consultas são pagas como se fosse para um médico generalista. Portanto, um médico se forma após seis anos e já pode trabalhar como generalista. Já o pediatra tem que se aperfeiçoar. Mas os dois vão ganhar a mesma coisa. Então, pra que investir pra ficar ganhando menos durante um período? — indaga o médico.
Cenário nacional e ciclo vicioso
O secretário de Saúde de Joinville, Andrei Kolaceke, entende o problema da falta de pediatras no município e no Estado a nível nacional. Ele afirma que, em todo o país, não são dados os incentivos necessários para formação em áreas que são estratégicas, seja no setor de pediatria ou na medicina de família e comunidade, para que o profissional procure a especialidade em detrimento de outras.
Ele usa como exemplo para ilustrar esta defasagem o processo seletivo aberto pela prefeitura de Joinville para plantonista pediatra. Foram apenas quatro inscritos e três classificados, sendo que 20 vagas foram disponibilizadas.
— Mesmo a remuneração sendo superior à média de mercado, existe uma dificuldade muito grande de se fazer a contratação. Aqui no município, inclusive, a produtividade do pediatra tem uma remuneração diferente da produtividade do médico clínico. Temos essa diferença e ainda assim temos essa dificuldade — justifica Kolaceke.
Portanto, pelo menos na cidade, a questão salarial não impacta tanto no momento da contratação, já que Kolaceke não enxerga diferença salarial tão relevante da rede pública em comparação com a rede privada, a questão primordial é a escassez de profissionais. E essa carência joga luz a outro problema: a guerra que cria-se no mercado para o preenchimento das vagas, já que, quem paga melhor e oferece mais vantagem, acaba contratando os poucos profissionais que ainda se especializam. No entanto, a lacuna permanece para as unidades de saúde que não conseguem contratar.
— Torna-se um ciclo vicioso. À medida que você tem menos profissionais no mercado, os que restam tendem a ter que atender um número maior de pacientes sozinho. E isso acontece tanto no serviço público quanto no privado. Os poucos pediatras que estão disponíveis acabam ficando, sim, sobrecarregados — pontua Kolaceke.
Baixa oferta para especialistas e população
Assim como Kolaceke, o secretário adjunto de Estado da Saúde, Alexandre Fagundes Lencina, entende que o problema enfrentado em SC é reflexo do mercado. Lencina vê a complexidade da situação, principalmente nesta época sazonal, onde as doenças respiratórias impactam o serviço de saúde e acometem o público infantil.
Se por um lado esses profissionais se tornam necessários e evidentes, por outro, a especialidade está cada vez menos atrativa aos recém-formados.
— A atenção primária está formatada numa estratégia de política pública do Ministério da Saúde, onde o serviço funciona com a estratégia da saúde da família e onde médico que é especialista da saúde da família e comunidade atende todas as faixas etárias do cidadão do SUS. Isso faz com que as especialidades médicas básicas, como a pediatria, não recebam tanta oferta no mercado. Essa também é uma das razões que, talvez, não se torne atraente para o médico buscar essa especialização — pondera o secretário estadual.
Cecim El Achkar, especialista pediátrico, considera que os serviços ofertados para a população também estão cada vez mais escassos. Se antes oferecia-se atendimento pediátrico em postos de saúde, hospitais e ambulatórios e outras redes de apoio na saúde pública, atualmente, na Capital, por exemplo, as consultas se concentram no Hospital Infantil Joana de Gusmão.
— Aí, quando a criança fica doente, ela vai no hospital infantil e o local sobrecarrega, porque não tem mais onde levar. Fechou-se os outros lugares. Floripa nos anos 1980, tínhamos um atendimento, em números de pediatras, três vezes maior que hoje. Se não mudar isso, a cada ano que passar, vamos ter menos pediatras e mais problemas. Todo dia o prefeito diz que o infantil quer contratar pediatra e não tem. Temos duas clínicas de pediatria e todos os profissionais têm mais de 15 anos de formação. Não tenho um pediatra recém-formado aqui — afirma Cecim.
Marcelo Scheidemantel Nogara, médico e coordenador do curso da Furb, acrescenta que a pediatria é muito importante para a população, já que o público infantil tem particularidades que só quem fez residência e se especializou na área pode compreender. Ele complementa apontando que “criança não é um adulto em miniatura”:
— Enquanto não se estimular a nova geração financeiramente e melhorar a tecnologia, infelizmente, não sei quem vai cuidar das crianças, porque médico de adulto, médico da família e enfermeira não entendem de criança. Você precisa fazer residência, tem que estudar, ter olhar observador e artesanal — complementa Achkar.
Fonte(s): nsc
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