Entre janeiro e agosto deste ano as unidades avançadas do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência em Santa Catarina), atenderam mais de 21.400 ocorrências. As classificadas como causas externas, ou seja, não ligadas a condição de saúde clínica do paciente, chegam a 15% do total dos atendimentos. Neste percentual estão as vítimas de agressão, afogamento e acidentes. Destes 15%, metade está relacionada a acidentes de trânsito em rodovias federais, estaduais ou dentro das cidades. Foram 1.400 pessoas socorridas em oito meses, uma média de quase seis acidentados por dia.
Conforme a gerente técnica do Samu/SC, Carla Araújo Pires, frequentemente os socorristas se deparam com situações extremamente graves. “Em ordem decrescente de acidentes graves a gente vê muita lesão de membro principalmente superior, membro inferior, traumatismo de crânio, tórax. Desde lesões, escoriações até evoluindo para amputação de partes como também lesões musculares, hemorragias cerebrais”, pontua.
Onze anos atrás, Neuza Gonçalvez de Brito da Silveira passou a fazer parte das estatísticas das violências nas rodovias federais que cortam o Estado. Na memória e no corpo da pensionista estão as marcas daquela quinta-feira, 11 de agosto de 2011, quando ela foi atingida por um caminhão na BR-101, em Paulo Lopes. “Eu estava de bicicleta andando bem no acostamento, aí o motorista imprudente me atropelou. Ele me arrastou, esta tudo documentado, por 35 metros. As duas rodas passaram em cima das minhas duas pernas. A direita também foi grave, mas a esquerda não teve jeito foi amputação”, relembra. A equipe do helicóptero Arcanjo fez o resgate e o transporte aéreo até o hospital. “Eu fiquei seis noites, cinco dias internada”.
A vida por um fio
“Nem era para estar aqui hoje, mas pela misericórdia de Deus todo poderoso ele permitiu eu estar aqui hoje para contar esta história”, fala Neuza ao recordar aquele dia que mudaria para sempre a vida dela. O socorro rápido foi fundamental para ela sobreviver ao acidente. Os socorristas do Samu se deparam frequentemente com cenas extremamente graves nos locais das ocorrências com pacientes e os profissionais lutam contra o tempo para salvar a vida de um acidentado.
“Eles têm risco de óbito tanto de morrer na própria cena quanto nas primeiras 2 a 4 horas, que seriam sequelas mais graves como rompimento de vísceras, baço, de fígado. Muitas vezes chegam com amputação de membros com sangramento de membros e eles têm que ser atendidos de imediato”, contextualiza Pires.
A médica relata ainda os problemas durante e depois da internação. Dependendo da gravidade e do tipo de lesão o paciente pode evoluir com infecção, trombose, demandando toda uma equipe de profissionais e estrutura para minimizar os riscos de sequelas e de morte. “Muitos precisam de vagas de UTI, ficam internados por uma permanência um pouquinho mais prolongada e acabam ficando sujeitos a outros riscos”, salienta.
Sem todo este aparato de socorro e hospitalar a vítima de um acidente de trânsito pode ter implicações e enfrentar dificuldades para retornar a vida, ser novamente economicamente ativa, reintegrar-se a sociedade e a própria família. “Isto envolve tanto terapias psicológicas, fisioterapia, recursos materiais, uma prótese para que ele consiga se adaptar a algum exercício físico, ao próprio ambiente de algum trabalho, tem muita coisa envolvida nisto. Não é só a parte física. É também a parte psicológica principalmente dos jovens que tem uma expectativa muito grande em relação a vida”, conclui a médica.
Números de uma guerra civil
De 2008 a agosto de 2022, Santa Catarina contabilizou um gasto de R$ 209 milhões com as 102 mil internações de vítimas de acidentes de trânsito somente nos hospitais públicos administrados pelo governo catarinense. Esta é somente uma parcela do empenho de recursos para atender acidentados.
Um levantamento coordenado pela CNT (Confederação Nacional de Transporte) indica que, entre 2012 e 2021, o custo com acidentes somente nas rodovias federais chegou a R$ 210 bilhões em todo o país. Nas BR´s que cortam o território catarinense o montante foi de quase R$ 20 bilhões.
Egídio Antonio Martorano, gerente de logística e sustentabilidade da Fiesc (Federação das Indústrias de Santa Catarina), acompanha esta problemática. Nestes valores são calculados os danos materiais, valores de seguro, gastos do SUS e dos hospitais. “As implicações sociais disto são imensas. Quando se coloca, por exemplo, que as vítimas têm entre 20 e 50 anos de idade, na média, são pessoas economicamente ativas. Então isto pode ter implicações também no dia a dia, no rendimento da família. Muitas vezes a questão da invalidez, danos motores, neurológicos, psicológicos”, afirma.
O número de indenizações por mortes no trânsito brasileiro na última década revela a gravidade deste cenário. De acordo com o relatório especial da Seguradora Líder, em dez anos foram mais de 485 mil indenizações por óbitos causados em acidentes. Como comparativo, a Guerra da Síria deixou mais de 360 mil mortos desde 2011, ou seja, é praticamente uma guerra civil nas estradas brasileiras. “Então é uma situação de guerra esta questão do trânsito e deve ser tratada como uma questão emergencial”, alerta Martorano.
Reabilitação
Neuza era uma pessoa que trabalhava para complementar a renda da família. Além de cuidar da casa, fazia faxinas para fora e também ajudava o marido que é pedreiro. “Eu trabalhava de doméstica, quando não, eu sempre estava auxiliando ele”, conta emocionada. De uma hora para outra, precisou adaptar a vida, sem a perna esquerda. Por causa da sequela, perdeu rendimento e o dia a dia ficou mais difícil. O processo de reabilitação levou tempo.
Para recuperar parte da independência motora e resgatar a qualidade de vida ela passou a usar uma prótese, porém ainda tem limitações físicas causadas pelo acidente que também comprometeram o movimento da perna direita. “Sequela para sempre. No meu caso a imprudência não foi minha foi totalmente do motorista”, desabafa.
A equipe do ND encontrou Neuza em uma loja de próteses e órteses no Centro de Florianópolis onde trabalha o Jair Cotiela, ortesista e protesista. Cotiela atende pessoas com sequelas motoras provocadas por problemas de saúde, mas a maior procura por equipamentos de reabilitação vêm de acidentados. “Com toda certeza é acidente de trânsito. A maioria com lesões e amputações nos membros inferiores. São histórias impressionantes. As vezes chegam aqui de cadeira de rodas, ou de muletinha, meio triste, cabisbaixo”, comenta. Cotiela afirma que os custos de uma prótese variam conforme o grau de sequela do paciente, o tipo de material e outros fatores. Ele prefere não comentar sobre valores.
Santa Catarina tem um serviço especializado de reabilitação onde são atendidos pacientes com diversos problemas de saúde. No setor de neuroreabilitação adulto do CCR – o Centro Catarinense de Reabilitação em Florianópolis – são em média 92 atendimentos por mês, entre eles vítimas de acidentes de trânsito. Segundo a coordenadora do setor, Isabela dos Passos Porto, algumas pessoas chegam com lesões neurológicas graves e a recuperação pode levar até cinco meses.
“Os pacientes vítimas de acidente de trânsito são mais jovens. Entre estes pacientes estão aqueles com Traumatismo Crânio Encefálico e nós observamos que 80% são do sexo masculino. Com trauma raquimedular 70% também do sexo masculino, e a média de idade em torno de 40 anos”, descreve sobre o perfil dos pacientes.
O CCR tem uma oficina ortopédica para fornecer equipamentos de reabilitação pelo SUS. A confecção de cada órtese, prótese ou cadeira de rodas é personalizada de acordo com a necessidade de cada pessoa. Só no ano passado o governo catarinense forneceu 4.450 materiais. Em 2022, até agosto, foram 2.344. O orçamento previsto pelo estado para esta área até o fim deste ano é de quase R$ 9 milhões.
Infraestrutura e conscientização
Autoridades de trânsito apontam a falta de infraestrutura e a irresponsabilidade dos motoristas como as principais causas de acidentes nas estradas. Uma conta que acaba sendo paga por toda a sociedade. “Infelizmente nós [Santa Catarina] estamos no ranking nacional de acidentes de trânsito como segundo colocado nas rodovias federais. Estamos ali equivalentes a estados como Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul que têm uma malha rodoviária e uma população muito maior do que a nossa”, alerta Martorano.
A Fiesc em parceira com o Grupo ND realiza há um ano a campanha SC Não Pode Parar para promover uma reflexão com toda a sociedade sobre o papel dos motoristas e também as autoridades na construção de um trânsito mais seguro. Desde maio, o foco do movimento é a responsabilidade e o papel dos motoristas para diminuirmos as estatísticas e casos como o da Neuza. “Conscientizar que a vida é muito preciosa”, clama a pensionista que hoje depende de auxílio financeiro do governo para sobreviver.
ATENDIMENTOS SAMU 2022
Janeiro-Agosto
21.441 ocorrências
Causas externas
3.242 – 15%
Acidentes de trânsito
1.400 – 56,81%
Média – 5,6 acidentes/dia
Fontes: SAMU/SC, FAHECE
CUSTOS ACIDENTES
Santa Catarina
Internações
2008 – 2022*
R$ 209 milhões – 102 mil
*até agosto
Fontes: Superintendência Vigilância Saúde SC, IPEA.
CUSTOS ACIDENTES
Rodovias Federais
2012 a 2021
Brasil – R$ 210,5 bilhões
Santa Catarina – R$ 19,9 bilhões
Fontes: CNT, FIESC/GETMS
FORNECIMENTO ÓRTESES, PRÓTESES E CADEIRAS DE RODAS
Centro Catarinense de Reabilitação
2021: 4.450
2022: 2.344 – destes 460 próteses
Fonte(s): CCR/Secretaria de Saúde SC
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